[MARATONA VOLTA AO MUNDO EM LIVROS] Niketche, Paulina Chiziane

 


    Começando com tudo a maratona #voltaaomundoemlivros. Confesso que esse aqui foi uma indicação de um estudante chatíssimo de letras que eu amo muito, então fiquei um pouco receosa em ler (a última indicação de literatura africana que ele passou me fez sentir raiva dos personagens do livro até hoje, mas foi legal, não vou mentir). Agora vamos falar um pouco sobre a obra e a escritora. 

Paulina Chiziane nasceu na cidade de Manjacaze, Moçambique, no ano de 1955. Estudou Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, mas não concluiu o curso e atualmente vive na província de Zambézia. Já deu para ver de qual país foi a leitura. 

Chiziane publicou diversos contos ao longo de sua vida e foi a primeira mulher moçambicana a publicar um romance, o livro Balada de Amor ao Vento, em 1990. Suas obras tendem a tratar do dia-a-dia de Moçambique, com foco especialmente nas mulheres moçambicanas e problemas sociais que muitas enfrentam ao longo da vida. Também foi a primeira mulher africana a ser prestigiada pelo Prêmio Camões, um dos maiores prêmios de Literatura em Língua Portuguesa. Essa mulher é um gigante literário, dá pra ver. Me sinto até mal em só estar conhecendo ela agora. 

Tendo isso em mente, vamos para o livro que eu li: Niketche, uma historia de poligamia. A história é narrada por Rami, uma mulher de 40 anos e esposa devota e amorosa de Tony, o maior babaca da literatura internacional, que, após 20 anos (e 4 filhos), descobre que o marido a estava traindo. O choque da descoberta é seguido de raiva intensa, e Rami vai atrás dessa amante para ensopapar conversar com ela. Chegando lá, nossa narradora descobre que a amante TAMBÉM estava sendo traída. E isso gera uma busca pela cidade e… bem, Rami descobre que Tony não só tinha uma amante, mas quatro no total. 

Essa descoberta leva os leitores, e Rami, em uma jornada cheia de dor, descoberta e evolução, nos colocando no lugar de diversas mulheres, que lidam com o machismo e a pressão social em diversas formas. Rami reúne as amantes, constrói uma relação entre elas e tenta nos apontam os absurdos da sociedade patriarcal, além da força da união feminina (apesar dos pesares).

Agora vamos a minha humilde opinião.

Começando do óbvio: Tony é um lixo. Já li muito livro com personagem masculino miserável, mas o Tony ganhou de lavada. Ele é imprestavel, mal educado, infantil, burro e otário. Como ele conseguiu tanta mulher legal interessada nele? Não sei (sei sim, o livro deixa bem claro as relações de poder e opressão em uma sociedade patriarcal, machista e capitalista, mas vou me fingir de desentendida porque eu realmente odeio o Tony). E por que Tony é tão ruim? Porque ele está ali para personificar, em vários momentos, o patriarcado. Tony é um policial de influência na cidade, ele tem dinheiro e status, estar com ele representa estabilidade, segurança, “calmaria”, isso em troca de ser vista como um objeto, um item que ele pode colecionar a vontade. Nenhuma das moças da história gostam disso, mas todas precisam, de certa forma, a maioria não tinha estudo, não tinha carreira, não tinha meios de sustento, muitas saíram de um relacionamento ainda mais abusivo que o do Tony. Como cuidar dos filhos, ter uma casa, (sobre)viver sem Tony? Virar amante, de certa forma, deu o mínimo para elas, agora elas eram vistas como pessoas, já que “mulher solteira é ainda pior”. E é nesse contexto que nossa heroína, Rami, decide virar o jogo. Na tradção moçambocana, a poligamia devia ser respeitada, possuiam regras, mandamentos, ordem. Um homem de respeito, um rei, possuíam mais de uma esposa, e dava a cada uma o que lhe era merecido, atenção, carinho, tempo. Sabendo disso, Rami arma uma situação (hilária, inclusive) para obrigar Tony a reconhecer TODAS  as amantes como esposas. Isso, apesar de no início gerar grande ansiedade e insatisfação para Rami, evolui para uma união profunda entre as próprias mulheres, que conhecem outras realidades, lidam com as inseguranças e evoluem para, aos poucos, superarem obstáculos causados pelo machismo.

O feminismo na história é bem presente, ao mesmo tempo que não é idealizado. Não é um caminho fácil, mas tem frutos excelentes. Cada uma das mulheres sai diferente dessa união. Lendo o livro, entramos de forma intensa nos pensamentos, crenças e vontade da Rami, e é tudo muito realista. Os sofrimentos e as dúvidas da protagonista se tornam os nossos. Então a leitura oscilou bem entre “uau, isso é muito engraçado,quebra a cara do Tony” e “nossa… eu quero chorar, sei como você se sente”. É muito catártico, eu diria. Foi uma leitura bem marcante pra mim, tanto pela história quanto pelas múltiplas interpretações possíveis dela. Esse foi um dos livros que você obrigatoriamente sai diferente depois de ler. O final… triste, eu diria, fecha a narrativa de um jeito que nos instiga a querer a mudança, e querer mais livros da Chiziane). 

Eu diria que ler esse livro é essencial. Não só pela história interessante, ou pela narrativa belíssima (acho que nunca li nada parecido, é até difícil definir, algo entre um fluxo de consciência e um monólogo interno bem poético), mas pelas reflexões que esse livro pode gerar. Temas como violência doméstica (física e psicológica), machismo internalizado e os problemas das sociedades patriarcais. Esse livro vai bem além de uma discussão sobre traição, no meio de uma prosa encantadora, Paulina Chiziane fala cultura e colonização, machismo, tradição, sororidade e relações poder, além da liberdade e da emancipação feminina pela união. 

 

Gostei bastante da leitura, foi uma excelente conhecer Moçambique pelos olhos da Paulina Chiziane , e acho que todos deveriam conhecer também. 


   





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